Raimundo Braz de Souza - o vovô Raimundo
Da mesma forma que meu avô Chiquinho, minhas lembranças de vovô Raimundo começam a adquirir forma mais clara a partir de 1942/43, quando nós - o comendador, dona Chiquita, eu, Zelinha e Ângela - lhe fazíamos as costumeiras visitas de fim de semana.
Ele, vovó Geni e alguns filhos também residiam no Bairro do Prado, na Rua Esmeraldas, nas proximidades da Avenida Amazonas, numa casa bastante grande e com um quintal cheio de árvores frutíferas. Foi ali que fiquei sabendo a utilidade de uma fossa, já que na época o saneamento básico ainda engatinhava.
Em um terreno baldio que existia nas imediações, assisti pela primeira vez um cinema grátis, mostrando documentários em preto e branco sobre a II Guerra Mundial.
Diferentemente do que aconteceu com vovô Chiquinho, minha convivência com vovô Raimundo foi menos acentuada, porque nossos encontros se davam normalmente nos fins de semana. Por outro lado, eu estava sempre junto ao vovô Chiquinho que, a partir de 1948/9, passou a morar lá em casa. Certa época "viajamos" eu e dona Chiquita, de Pedro Leopoldo até a fazenda do Quilombo, numa charrete conduzida pelo vovô Raimundo.
Trago em minha memória interessante faceta que caracterizou a sua personalidade. Não me lembro de tê-lo visto sorrir uma única vez. Extremamente educado, mas sempre circunspeto, transmitia a todos que com ele conviviam o compromisso com a ética e a honestidade, característica indelével repassada a todos os seus filhos e felizmente herdada pelos netos e bisnetos.
Seu pai e evidentemente meu bisavô, Cândido Pereira de Souza - o mestre Candinho -, nascido na cidade de Cordisburgo, de acordo com vários depoimentos e indicações bibliográficas, foi um marco de referência da Educação no Estado. Dele receberam as primeiras lições personalidades ilustres de Minas Gerais, como, por exemplo, o autor da obra prima da prima da literatura brasileira Grande Sertão:Veredas, João Guimarães Rosa, Vicente Guimarães, o próprio comendador e outros expoentes.
Poucos se lembram que vovô Raimundo chegou a possuir pequena lanchonete no fim da Rua Jacuí, no Bairro Renascença. Ali experimentei, talvez pela primeira vez, uma laranjada então servida em copos de papel. Íamos de bonde até o local e ao atravessar o viaduto da Floresta, eu ficava maravilhado com as composições ferroviárias que se movimentavam no pátio da estação. Acho que sua permanência nesse estabelecimento comercial foi efêmera.
Por volta de 1948, foi admitido na Icominas S/A, firma de propriedade de Augusto Trajano de Azevedo Antunes, então um emergente empresário paulista em Minas Gerais. Coincidentemente, trabalhei 30 anos na Minerações Brasileiras Reunidas S/A - MBR, empresa surgida através da fusão, por motivos políticos, entre a Companhia de Mineração Novalimense e a Icominas S/A.
Compulsando acervo antigo dessa empresa, descobri o registro funcional de vovô Raimundo, onde consta sua admissão como auxiliar de almoxarifado, no Barreiro. Interessante assinalar que minha tia Glorinha, tio Manoel, meu primo Chico e tio Agostinho, também prestaram serviços àquela empresa por algum tempo. Os antigos empregados se recordam das dificuldades financeiras enfrentadas pela Icominas S/A naquele período até que, em 1950, foi criada a Icomi S/A numa associação com capitais americanos, para explorar as reservas de manganês descobertas no então território do Amapá, alavancando de vez as atividades do grupo empresarial.
É voz corrente que àquela época os empregados da Icominas S/A muitas vezes recebiam seus salários em forma de gêneros alimentícios, dada a exigüidade de recursos financeiros experimentada pela empresa. O comendador, então trabalhando na Casa Giácomo, dá conta de que o sr. Giácomo, proprietário da tradicional casa lotérica, várias vezes fizera empréstimos em dinheiro àquele empresário.
Hoje a MBR faz parte do grupo de empresas pertencentes à Companhia Vale do Rio Doce que, mediante agressiva estratégia de negócio, está adquirindo o controle acionário de quase todas as mineradoras do País, estendendo seus tentáculos até o exterior. Portanto, a Icominas S/A, a Icomi S/A, a Companhia de Mineração Novalimense e a própria MBR são hoje páginas viradas no livro da História, esquecendo-se muitos brasileiros de sua importância para o progresso da atividade mineral no País e particularmente em Minas Gerais.
Dignos de nota são o carinho e o reconhecimento a seus empregados evidenciados pelos empresários daquela época, como Augusto Antunes e a diretoria da Hanna Mining (sucedida pela Companhia de Mineração Novalimense). Estão gravados em minha memória fotográfica os cheques enviados diretamente pelo dr. Antunes ao vovô Raimundo na época de Natal, agradecendo os serviços prestados por ele.
Por outro lado, trabalhando na Companhia de Mineração Novalimense desde 1958, a partir daquela data eu e todos os empregados já recebíamos uma gratificação natalina e presentes para os filhos, antes da lei que instituiu o 13o salário. As relações patrão/empregado certamente eram mais sinceras, amistosas e éticas. Hoje não se vê isto... Observe a situação dos bancários e tomadores de empréstimos, massacrados pela ganância dos banqueiros que auferem lucros astronômicos, tudo isto sob a complacência e o beneplácito do Governo Federal. Onde já se viu Lucros Líquidos de mais de 15% sobre o Patrimônio Líquido? Só mesmo num país como este...
Voltando a vovô Raimundo. Sua família residiu em vários locais aqui da Capital. Recordo-me dos seguintes: Rua Esmeralda, portanto, foi vizinho do vovô Chiquinho; Rua Joaquim Murtinho, quase no entroncamento com a Avenida Prudente de Morais, que não existia na época e onde passava um córrego; Avenida Barbacena, a poucos metros da esquina com Avenida Tereza Cristina; Rua Porto Alegre, nas imediações da linha férrea da RMV e, finalmente, na casa de sua filha Diva, na Vila Oeste.
É certo que vovô Raimundo era uma pessoa muito inventiva, reflexo de sua inteligência, capacidade de observação e perspicácia. O comendador sempre faz referência a dois inventos concebidos por ele e que por circunstâncias alheias à sua vontade não foram comercializados. Um deles, um implemento agrícola que preparava covas, lançava sementes e concomitantemente as fechava. Outro, um açucareiro que possibilitava a saída do açúcar na medida adequada, sem produzir as crostas que normalmente se formavam no mesmo.
Junto à parede da sala das casas onde residiu podia ser vista uma antiga espada. Todos tínhamos curiosidade de saber a sua origem. Não conseguimos, a despeito de todos os esforços feitos. Parece que hoje está em poder da minha tia Eni. Lancei umas indiretas para obtê-la, mas tudo em vão...
Nas visitas que fazíamos aos domingos, quando vovô Raimundo e vovó Geni já estavam morando num barracão ao lado da casa da tia Diva, o comendador, Afrânio, Marcelo, Euler, vovô e outras pessoas gostavam de jogar escopa. Acho que é este o nome, porque de baralho só sei o nome de uma carta, o tal de ás.
Em 1967 - ano de tristes recordações para a família, porque no seu decorrer morreram meu tio Agostinho e seu filho Jorge - vovô Raimundo também foi acometido por complicações cardíacas, ficando internado vários dias no Hospital São Francisco, vindo a falecer tempos depois.
Uma palavra final. Vovô Raimundo foi uma pessoa simples, calma, discreta, inteligente, desprovida de vaidade, compreensiva e sobre tudo ética, deixando como herança para seus descendentes essas virtudes, infelizmente raramente encontradas nos dias atuais.
Antonio Castilho de Souza
Outubro de 2006