Vovô Chiquinho - um filósofo
Continua vívida em minha memória a presença de uma pessoa que conosco conviveu na rua Sabinópolis 41, mesmo que tenha nos deixado há mais de cinqüenta anos, para ser mais preciso, cinqüenta e seis anos.
Trata-se de Francisco Machado de Castilho - o vovô Chiquinho - como carinhosamente o chamávamos no seio de nossa família.
Conheci-o mais intimamente por volta de 1.942, quando alcançava a idade de quatro anos. Logo de início, mesmo com a minha tenra idade, percebi como era evoluído intelectualmente e como também sabia tratar as pessoas, principalmente as crianças como eu.
Naquela época, ele possuía um armazém (hoje não existem mais; chegaram os supermercados, templos do consumismo exagerado), situado na rua Esmeraldas, 110, no bairro do Prado. Ali conheci pela primeira vez um telefone e uma cadeira de balanço, que ficavam na sala da casa, muito espaçosa, por sinal. Havia também um rádio antigo, com um alto falante enorme, que ficava em cima de um armário. Em frente à casa, existia uma fábrica de malas de madeira, onde trabalhava o meu tio Agostinho.
Possuo uma recordação interessante daquele armazém. Antigamente, as compras eram feitas mediante anotações em cadernetas que, no final do mês, eram somadas e pagas pelos fregueses (hoje são clientes). Havia muita confiança no ser humano, diferentemente dos dias atuais, onde prevalece a falsidade, a desonestidade, o preconceito, a competição desenfreada e a falta de escrúpulos. O pagamento das contas era assinado pelo vovô, inclusive com selo. Folheando esta caderneta, toma-se conhecimento da simplicidade e da pequena quantidade de itens fornecidos (não estávamos massacrados pelo consumismo exagerado dos dias de hoje), que eram basicamente: arroz, feijão, fubá, açúcar, café, sabonetes, carne etc. Nada de papel higiênico que era privilégio de poucos.
Lembro-me da varanda da casa, anexa ao estabelecimento comercial, onde vovô morava com minha vovó Maria e seus filhos Francisco, Zilda e Lúcia. O tio Agostinho residia nas proximidades. À época as duas tias estavam de namoro firme com Adolfo e Jamil, já falecidos, os quais sempre brincavam muito comigo, exatamente como hoje faço com meu neto e sobrinhos.
Quase todos os domingos o comendador, a comendadora, eu e, se não me engano, Zelinha, saíamos aqui da Rua Sabinópolis e dirigíamos a pé até a casa do vovô, passando pela rua Padre Eustáquio, descendo a rua Suaçuí, atravessando uma ponte estreita e perigosa sobre o rio Arrudas para alcançar, logo depois a rua Erê, onde se localiza ainda hoje uma unidade da Polícia Militar para, finalmente, chegar ao destino. Perto deste local, localizava-se o Hipódromo Mineiro onde, aos domingos, eram realizadas corridas de cavalo.
Bons tempos aqueles em que não havia perigo algum em andar a pé pelas ruas. A maioria da população não possuía carro próprio. Os três únicos veículos que conheci foram o do dr. Maurício Café, um Chevrolet preto, ano 1942, o do sr. Bernardinho, nosso vizinho, também um Chevrolet cinza, ano 1942, e o do meu tio Muniz, uma baratinha Chevrolet, ano 1939, cor vermelha. Tempos difíceis de pós guerra... O bonde e o ônibus serviam como únicos meios de transporte.
Um simples assalto a residência na rua Santa Quitéria, em 1948, perpetrado por um conhecido marginal cuja alcunha era Zé Muniz, constituiu um acontecimento marcante na vida de Belo Horizonte, então com apenas 300 mil habitantes, ocupando manchetes de jornais e servindo de comentários de toda a comunidade.
Vítima de inescrupulosos comerciantes que se aproveitaram de sua boa fé, infelizmente teve de fechar seu armazém na rua Esmeraldas por volta de 1947. Mudou de ramo. Virou fabricante de pães, adquirindo uma padaria no final da rua Manga, então um verdadeiro fim de mundo. Eu gostava muito de ir lá ver como era preparado o pão e experimentar o líquido com o qual eram recobertos os pães doces. Levava umas broncas leves por esta falta de educação e higiene.
Quis o destino que vovô Chiquinho sofresse um derrame cerebral em 1949. Sem condições financeiras, passou a residir, ele e a família, num barracão construído pelo comendador no fundo do lote da rua Sabinópolis, que tinha um quintal enorme, com várias árvores frutíferas, dentre elas, parreiras, bananeiras, abacateiros, pitangueiras etc. Também criavam-se galinhas e lá existia um forno de barro onde a comendadora, dona Chiquita, fazia biscoitos fritos para ajudar o comendador na manutenção da casa.
Durante quase dois anos tive o privilégio de conviver diuturnamente com esse homem que possuía uma incrível capacidade de ouvir as pessoas pacientemente e narrar casos ocorridos no passado, sempre com a intenção de dar bons exemplos especificamente para mim, o único neto homem por perto. Era apaixonado por músicas orientais e sempre ouvia, junto comigo, programas de rádio onde estes temas eram tocados. Acho que aí está a origem de minha admiração pela cultura islâmica. É importante frisar que a partir do nascimento de Maomé, por volta de 570 DC, os árabes exerceram influência fundamental na formação cultural de praticamente todos os povos ocidentais. É só fazer uma viagem à Espanha e Portugal para comprovar "in loco" a importância desse povo. Seu império estendeu-se pelo continente europeu, africano e asiático deixando marcas indeléveis de sua presença na música, na ciência, nas artes e na religião. É de se lamentar, entretanto, o seu fundamentalismo religioso, tão prejudicial à necessária convivência harmônica entre os povos.
Tenho convicção clara que mesmo sem ter freqüentado os bancos de uma universidade, a sapiência do vovô Chiquinho e sua cultura humanista, que abrangia quase todos os campos do conhecimento, principalmente a Filosofia e sem ser moda da época a própria Psicologia, fez com que este homem nascido no interior mineiro realmente se transformasse numa pessoa especial e referencial para todos aqueles que com ele conviveram.
Interessante que, diferentemente de toda a nossa família, vovô Chiquinho não abraçava religião alguma. Preocupava-se com o próximo. Interessava-se mais para o Espiritismo e recordo-me que recebia sempre uma revista, chamada Almanaque do Pensamento, que abordava temas da doutrina criada por Allan Kardec no século 19. Os almanaques eram convenientemente escondidos para que não pudéssemos ler o que ali estava escrito.
Devido à doença, que paralisou seus movimentos no lado esquerdo do corpo, andava sempre com uma bengala feita com cabo de vassoura e em uma das extremidades, onde ele a segurava, foi pregado um pequeno retângulo de madeira à guisa de melhor firmar-lhe a mão direita. Às vezes, ficava sentado no quintal lá de casa com a bengala em posição de ataque. Aguardava, pacientemente, que uma mosca dessas grandes, ousasse voar perto dele e, pronto, dava-lhe uma bengalada. Era tiro e queda. Morria de imediato o nojento inseto, causando espanto a todos nós pela sua agilidade e paciência.
Em 13 de dezembro de 1950, numa Quarta-feira, faleceu em seu quarto, que ficava bem próximo à nossa casa. Eu era coroinha na ocasião e estava voltando da missa das 7 horas da manhã quando, dirigindo-me ao seu aposento, deparei-me com aquele homem - um exemplo para todos nós - imóvel e já sem cor, deitado candidamente, à espera da realização de sua última jornada aqui na terra.
Antonio Castilho de Souza
Setembro de 2006