FREI ZACARIAS VAN DER HOEVEN
"A vida não é a que a gente viveu, e sim a que a gente recorda, e como recorda para contá-la".
Estas são palavras citadas no início do livro 'Viver para Contar", escrito recentemente por um dos maiores representantes da literatura latino-americana, o colombiano Gabriel Garcia Márquez, também autor de "Cem Anos de Solidão".
Acredito que sirvam como intróito para o que a seguir se recorda acerca de uma das personalidades mais marcantes e que mais influenciaram a vida quotidiana do Bairro Carlos Prates.
Frei Zacarias, como a grande maioria dos frades franciscanos, nasceu na Holanda e muito cedo veio para o Brasil para exercer o seu apostolado junto às comunidades. Esteve na cidade natal do comendador, Cordisburgo, transferindo-se mais tarde para a Paróquia do Carlos Prates. Na verdade, batizou o comendador, presidiu seu casamento com a comendadora e batizou quase todos os filhos do casal.
Foi responsável direto pela construção da Igreja de São Francisco das Chagas, graças à sua persistência e seu denodo em levar a cabo esta tarefa, muitas vezes inglória, tendo em vista a situação de penúria do Brasil àquela época - décadas de 30 40 e 50. Falava-se, à boca pequena, que sua família na Holanda era muito rica e que o ajudara financeiramente para que a imponente obra pudesse ser erigida.
Tinha uma personalidade muito forte e uma presença física amedrontadora, exercendo, por esta razão, incrível influência na formação das famílias e na própria comunidade. Seu conservadorismo em termos de liturgia era extremamente acentuado. Todavia, isto não acontecia apenas com Frei Zacarias. Naqueles tempos longínquos a Igreja ainda se apegava a dogmas e conceitos de há muito postos de lado, graças à evolução que se observa desde os tempos do Concílio Vaticano II.
Hoje em dia, todas as cerimônias são realizadas utilizando a língua falada no país; em nosso caso, o Português. As confissões, que nada mais são do que uma consulta a um psicólogo, não ocorrem como antigamente, isto é, o padre dentro de uma casinha de madeira e o "pecador" fora dela. São comunitárias.
Frei Zacarias participou ativamente de campanhas de moralização e/ou melhorias para o bairro. Cito duas delas: queria ele de toda forma retirar da rua Mauá, hoje Avenida Nossa Senhora de Fátima, as prostitutas que lá havia, ostensivamente mostrando seus "dotes" físicos para quem por ali passava, seja de bonde, a pé ou de carro. Na inocência de meus 11 a 12 anos não compreendia porque tanto exibicionismo por parte daquelas que ali praticavam a mais antiga das profissões. Não conseguiu seu intento. Pelo contrário, a prostituição ganhou status de comércio de luxo, surgindo os motéis e outros pontos de encontro. Outra campanha, esta com relativo êxito, foi a luta para retirar do bairro os trilhos dos trens que por ali cruzavam, semeando a morte e a destruição. Houve até solenidade onde eles foram devidamente salgados e amaldiçoados. Hoje temos o metrô que não faz mal a ninguém e que o Governo Federal teima em não liberar verbas para sua conclusão. Ainda mais agora, com esta administração federal manchada pela corrupção desenfreada e total indiferença com a coisa pública.
Nossa casa era bastante freqüentada pelos padres da paróquia. Lembro-me de Frei Antonello, em cujo coral exibia meus dotes de cantor de segunda voz; frei Osvaldo, um grande contador de casos; Frei Rogato, que gostava de fazer mágicas; Frei Joaquim, que insistia em levar-me para o seminário e outros. Por incrível que pareça, apesar de ter feito o casamento do comendador e da comendadora em 1938, ter batizado o comendador e alguns de meus irmãos, não freqüentava a nossa casa. Efetivamente, era uma pessoa muito fechada e cheia de carisma.
Expulsou-me duas vezes do recinto da igreja durante a celebração de uma missa, quando eu ainda assistia estas cerimônias religiosas. A propósito, as mais bonitas para mim eram a celebração do Natal e a Semana Santa. Em uma dessas missas, estava junto com a minha esposa, quando ele solicitou nossa retirada do recinto. Frei Zacarias não permitia que casais ficassem junto um do outro; na realidade uma das metades da igreja era destinada aos homens e a outra às mulheres. Machismo incompreensível, a meu ver. Numa outra ocasião, com uma antiga namorada, aconteceu a mesma coisa. Acho que a Igreja perdeu ao longo do tempo muitos de seus seguidores por atitudes infelizes como estas e a manutenção de situações completamente destituídas de fundamento lógico.
Diferentemente dos outros frades, lembro-me que era muito raro Frei Zacarias dirigir a palavra a algum de nós que, como coroinhas, ajudávamos na celebração das missas, sepultamentos, casamentos etc. Sempre circunspecto e rigoroso. Gostava, em suas práticas, da palavra "afinal", que era muitas vezes empregada fora do contexto, mas falava relativamente bem o Português.
Entretanto, o bairro do Carlos Prates deve muito a este sacerdote holandês, pela sua pertinácia na realização dos objetivos que entende-se perfeitamente bem, visavam ao bem estar da comunidade e a firme obediência aos preceitos da Igreja Católica. Tenho a impressão de que ele, indiretamente, foi responsável por eu gostar de música clássica e também americana, porque através do alto falante da Igreja sempre às tardes e às noites, éramos brindados com temas musicais de extremo bom gosto. Em termos de música clássica, ouvi pela primeira vez o Concerto Em Dó Sustenido Menor, de autoria do compositor e pianista russo Sergei Rachmaninoff. Quanto à música americana, não me esqueço de Love Letters e Georgia on my mind, muito ouvidas naquela época.
Frei Zacarias foi, também, grande incentivador do Cineminha que ficava em frente à nossa casa, na Rua Sabinópolis. Ali tivemos oportunidade de ver e rever clássicos da Sétima Arte, como Encouraçado Potemkin, marco do cinema russo; The Three Godfathers (Os três padrinhos), de John Ford; séries de Tarzan e Flash Gordon (o comendador dizia que se parecia com um dos atores); os primeiros filmes de John Wayne; Gilda, com Glenn Ford (recentemente falecido) e a lindérrima Rita Hayworth e inúmeros outros.
Após um longo período ausente, quando foi transferido para outra paróquia, Frei Zacarias faleceu em Agosto de 1974. Seu corpo foi velado por mais de um dia no recinto da Igreja São Francisco das Chagas, sua principal realização material, e recordo-me que milhares de pessoas foram velá-lo, inclusive eu, que acabara de voltar de minha primeira viagem ao exterior.
Antonio Castilho de Souza
Setembro de 2006