Raimundo Machado de Castilho - Sô Dico



Buscando lá no fundo de minha memória, acho que comecei a conhecer o meu tio Sô Dico - este o seu apelido -, se não me engano, no fim da década de 40, mais precisamente quando o filósofo vovô Chiquinho e vovó Maria passaram a morar em um barracão construído pelo comendador lá no fundo da casa situada na rua Sabinópolis 41.

Considero Sô Dico uma personagem de um lirismo ímpar, frequentemente identificada nas obras de nosso escritor maior - Joaquim Maria Machado de Assis. A coincidência do sobrenome não é sintomática, mas certamente provoca reflexões. Fisicamente parecia com outro expoente da literatura brasileira, o cordisburguense João Guimarães Rosa, autor do clássico Grande Sertão:Veredas.

Trajava sempre ternos com tons cinza e azul escuro, camisas brancas, gravatas de cores sóbrias e sapatos pretos sempre muito bem engraxados. Usava um relógio de bolso marca Omega, naqueles tempos um artigo de luxo para poucos.

Ao observar sua figura, chamava atenção os óculos arredondados de grau acentuado, com aros escuros, bem como seus passos rápidos e pernas ligeiramente arqueadas, característica herdada da vovó Maria, cujas pernas apresentavam essa pequena deformidade. Carregava invariavelmente consigo uma pasta de couro onde colocava seus papéis de trabalho. Com toda a finura que marcava a sua personalidade, não permitia que mexêssemos nela em hipótese alguma.

Iniciou sua carreira bancária no Banco Comércio e Indústria de Minas Gerais S/A, onde exerceu, a partir de meados dos anos vinte, cargos relevantes. Em 1943, a convite de Antonio Martins Fontoura Borges e seu primo Ronan Rodrigues Borges, passou a participar como Diretor Gerente do Banco Nacional do Comércio e Produção S/A, fundado naquele ano, com sede na cidade do Rio de Janeiro.

Como todo tio que se preza, sempre trazia presentes para mim e meus irmãos, sejam balas, doces, biscoitos ou outras guloseimas. Nunca deixava de nos deixar um agrado por menor que fosse.

Aguardávamos todos, inclusive seu irmão Francisco, que também morava conosco, suas visitas que ocorriam, acredito que de dois em dois meses, quando de sua passagem por Belo Horizonte, em direção a algumas agências bancárias localizadas no interior do Estado como parte de seu trabalho.

Mesmo com suas vindas costumeiras a Belo Horizonte, onde aproveitava para rever suas irmãs, inclusive aquelas que moravam na cidade de Pedro Leopoldo, que também era sua cidade natal, Sô Dico costumava escrever cartas para vovó - um hábito hoje praticamente extinto, substituído pelos famigerados e-mails. Li várias cartas escritas por ele onde pude descobrir que sua semelhança com personagens de Machado de Assis não se restringia à vestimenta apenas, mas também na maneira de redigir, num português escorreito beirando o clássico, aliando a tudo isto uma caligrafia esteticamente perfeita.

Gostava muito de conversar com ele e pude notar, mesmo sendo ainda um guri, que havia uma empatia muito grande entre nós. Ele ficava boquiaberto ao ver minha capacidade de dizer o número identificador dos bondes que trafegavam pela rua Padre Eustáquio, apenas ouvindo o barulho das rodas de aço percorrendo os trilhos. Não sei bem explicar como fazia isto e também a minha profunda identificação com esse antigo e popular meio de transporte daquela época, seus motorneiros, condutores, fiscais, mecânicos etc. Até hoje, quando eventualmente visito o Museu Histórico de Belo Horizonte, retorno através de uma máquina do tempo imaginária àqueles períodos de paz, tranqüilidade e ética, tão em falta no momento. De pronto, recordo-me da extraordinária presença do meu tio Sô Dico.

Seu modo de ser, sua personalidade, sua educação, sua visão de vida, sua capacidade de se fazer ouvir e também a paciência para escutar uns chatos como eu, representavam um verdadeiro espelho de seu pai, vovô Chiquinho, no meu modo de ver um filósofo moderno na mais ampla acepção da palavra, nada devendo aos seus antecessores gregos, árabes e romanos.

Fixou residência no Rio de Janeiro, onde se estabeleceu definitivamente. Contavam-se histórias engraçadas sobre sua esposa, Zaira, e seus filhos Antonio, Fernando e Silvinho, os dois últimos precocemente falecidos, e que foram meus companheiros de festas e namoros em Pedro Leopoldo.

Recordo-me que nossa família aqui em Belo Horizonte, em sua maioria, considerava o Rio de Janeiro apesar de sua inegável beleza cênica, a cidade da perdição e do pecado, uma espécie de Sodoma e Gomorra dos anos 50, preconceito típico de uma época pós guerra, durante a qual as liberdades e as convicções pessoais eram extremamente reprimidas.

No início de 1956, Sô Dico foi acometido de uma doença grave que um médico me disse, incidentalmente anos mais tarde, seria fogo selvagem. Não sei se é verdade; dizia-se que era câncer. O fato triste e marcante desse alvorecer de 1956 foi o seu falecimento no mês de Abril. Por mera coincidência, uma de suas irmãs, não sei se Lourdes ou Lúcia, ficou sabendo de sua morte ao ouvir o noticiário de uma emissora de rádio da então capital federal. Àquela época o prestígio e audição das rádios eram muito grandes, porquanto a televisão ainda engatinhava. Aqui em Belo Horizonte a televisão foi inaugurada apenas em Novembro de 1955. Acho que no Rio de Janeiro já havia televisão desde 1950.

Houve um desapontamento no seio da família aqui em Minas Gerais, que não foi avisada com antecedência para participar dos funerais. Acho que vovó Maria e a comendadora, dona Chiquita, visitaram Zaira e os filhos dias após o sepultamento, porque naquela época os vôos para o Rio de Janeiro eram escassos. Ficou essa mancha e um ligeiro estremecimento nas relações familiares que, com o tempo, se dissipariam. Sempre o tempo...







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