PELÉ NO GALO
Seu Abraão me lembrava muito o Comendador Onésimo, com sua aparência de Sheik das Arábias, Rei Farauk, careca bem penteada, costeletas margeando as orelhas e bigodinho de estourar balão. Nos seus bons tempos, levantava cedo para pechinchar no Mercado Central e nos domingos ia ver o jogo do Galo.
Era um libanês boa praça, gostava de uma conversa pra se jogar fora. Quase aos 90 anos, já não descia as escadas do prédio em que morava no 3° andar e estava quase sempre na janela, a curiosar os acontecimentos. Bem humorado, cronista de plantão, comentava os fatos e a vida que passava . Do alto de seu posto, reclamava ou ria muito, conforme o caso.
Torcedor fanático do Galo, não perdia a ocasião de puxar conversa com Nilo Savini, cruzeirense ferrenho, barropretano de longa estirpe. Se orgulhava das glórias passadas do Galo e detestava ver o Cruzeiro em alta. O dia que a "Italianada" perdia, seu Abraão se postava na janela, sorrindo, esperando a chegada dos cruzeirenses:
- Nila, Cruzeira ó, e fazia o gesto com o polegar, prá baixo, indicando que o time estrelado esteve mal, havia perdido o jogo. - Eu muita feliz, Nila , Cruzeira ruim demais, salamaleque, Alá seja louvado!
Nilo, seu vizinho antigo, ria para não perder o amigo, tinha que engolir calado as gozações. Quando o Galo perdia, o jogo virara, dava o troco:
- Ô seu Abrão, o seu galinho hein, ? A selegalo se estrumbicou. O galo virou galinha!
Os cruzeirenses da rua, que conheciam a fama do Abraão cantavam provocando:
- Preto e branco, branco e preto, esse galo é um espeto...
Nessas ocasiões, seu Abraão ficava bravo e devolvia maldições:
- Tomara Roberta Batata quebra perna! Tomara Palhinha torce joelho! Tomara Raul engole frango! Tomara pega fogo Toca da raposa!
E fechava a cara e a janela. Não queria saber de conversa. Seus netos, Jurgino (Jorginho) e Willian pediam:
-Vô, pelo amor de Deus, abre essa janela, tá muito calor!
- Deixar janela fechada. Abraão nun qué vê cara de cruzeirense. Tão enchendo saco de Abraão. Esses cruzeirenses que morram e vão arder no fogo do inferno! InshAllah!
Um belo dia, década de setenta, seu Abraão levantou entusiasmado. Abriu a janela e o sorriso, ficou lá esperando a passagem dos cruzeirenses pela entrada do prédio. O primeiro que passou, Nilo, foi logo ouvindo:
- Nila, agora Galo vai rebentar Cruzeira! Pelê vem pra Atlético!
- O que é isto , seu Abraão. Que dia que o Pelé vai vir pro Galo? É nunca. Galo não tem dinheiro. Jogador pro Galo é Dario, Dadá jacaré.
- Não, Nilo, verdade! Abrão ouvir no rádia Tatiaia: Pelê vem pra Atlético! Já recebeu dinheirinho. Vai chegar Belorizonte, tudo acertado. Agora ninguém ganha Galo! InshAllah!
Nilo dá uma gargalhada e segue seu rumo. Mas fica a dúvida. Será que o Pelé, maior jogador do mundo, vem mesmo para o Galo?, - pensa com um frio na barriga.
Naquele dia, montou plantão na janela, e os passantes, transeuntes e trabalhadores que iam passando na rua, independente da paixão clubística, iam ouvindo a grande notícia do dia, narrada pela radiante voz do seu Abraão:
- ô seu lixeira, Pelê vem prá Atlético!
Assim todos daquele trecho ficaram sabendo da novidade: Os recolhedores do lixo, o Portuga Manuel, encanador da oficina de bombeiro, Benedetto Chiari, italiano da esquina, Dona Itália, vizinha cruzeirense , o gordo seu Umbelino, atleticano, que também não saía da janela da casa de frente, o pipoqueiro que passava à tardinha, a boazuda que saía todos os dias pontualmente às dezesseis não se sabe pra onde, Birola, o cachaceiro honorário do quarteirão e todos moradores do prédio. A grande manchete se alastrou: Pelé vem para Atlético!
Ao final da tarde, William chega da escola e é recebido alegremente:
- Meu netinho, agora o coisa vai! Pelê vem pra Atlético!
- Que isso vô, não é Pelé, é Telê. Telê vem pro Galo. Telê , treinador.
- Mas num é possível coisa dessa. Abrão num engana, ouviu rádia Tatiaia: Pelê, vem pra Atlético.
- Não, vô, é Telê. Eu trouxe o jornal. Olha aqui, vô, TELÊ !!!
Teimoso que só ele, caiu na real quando leu a página de esportes. Então sentou na poltrona, desiludido, e começou a resmungar impropérios em árabe que só ele entendia: sharmuta, zafra nafru tiza, saddam maldita, rabib fdp!!!
Desfeita a confusão, seu Abrão ficou uma semana sem abrir a janela, evitando as gozações da galera. Só voltou a aparecer depois que o Galo começou a ganhar sob o comando do novo treinador. E bem feliz, com suas provocações costumeiras aos vizinhos:
- Nila, não é Pelê, é Telê, Abraão falar bobagem. Mas Atlético tá ganhando. Oxalá chega dia de Cruzeira! É Alá no céu e Telê na Galo. Inshallah !
R.Oliva
Julho2007