G. E. Mello Viana: primeiras experiências
Alvorecer de 1947. Cruzo a porta principal do Grupo Escolar Mello Vianna situado logo no começo da rua Bonsucesso, quase esquina de rua Contagem, hoje Padre Eustáquio.
Ali tem início minha trajetória de aprendizado das coisas da vida. Escola tradicional de Belo Horizonte, no mesmo nível dos Grupos Escolares Afonso Penna, D. Pedro II, Lúcio dos Santos e outros.
Recordo-me vagamente de minha primeira professora - dona Letícia. Hoje estas abnegadas servidoras públicas têm outro nome. São as "tias" e ponto final. É tia para lá é tia para cá. Mais tarde, foram minhas professoras dona Nívea, no segundo ano, e dona Terezinha, no terceiro e quarto anos. Dona Nívea, filha do sr. Licurgo Lucena, um velho conhecido de meu pai, e que foi contador da Casa Giácomo, tradicional casa de loterias de Belo Horizonte, era extremamente rígida e brava e várias vezes me colocou "de castigo" em pé junto à parede da sala de aula, de costas para os colegas. Frequentemente mandava escrever uma frase escolhida na hora numa folha de papel de embrulho até enchê-la por completo.
Anos depois, por volta de 1951, o sr. Licurgo faleceu e compareci ao seu enterro a pedido do comendador e da comendadora. Apesar de ser "catedrático" em funerais, pois fui coroinha na Igreja São Francisco das Chagas, me vi como um peixe fora dágua em meio às inúmeras pessoas ali presentes. Tarefa inglória aquela, mas que foi cumprida.
Movimentada e agradável era a rotina escolar, iniciando-se às 7 horas prolongando-se até as 11 horas, isto no primeiro e segundo anos. No terceiro e quarto, começava as 12 e terminava às 16 horas.
As disciplinas lecionadas eram: Língua Pátria, hoje Português, Aritmética, Geografia e História, Ciências Naturais e Instrução Moral e Cívica. Havia, suponho que uma vez por semana, aulas de Religião através de padres franciscanos da Igreja de São Francisco das Chagas. Noções de Puericultura também faziam parte do currículo escolar. Se se perguntar o que é Puericultura é capaz de poucas pessoas hoje conhecerem o seu significado.
Faceta interessante da época: os meninos ocupavam uma carteira e as meninas outra. Nada de mistura. Aliás, era um "castigo" menina e menino se sentarem na mesma carteira que, por sinal, era de madeira de ótima qualidade e não este material de plástico altamente poluente de hoje.
O quadro era negro e retangular. Atualmente é chamado de lousa e tem a cor verde para melhor visualização, o que é uma verdade. Também servia de lugar para "castigo". A vítima ficava de costas para a platéia, com as mãos para cima e em silêncio. O fundo negro do quadro constituía uma perfeita moldura de terror e constrangimento.
Certa vez, o comendador foi chamado pela professora Nívea para se queixar de algo que eu teria perpetrado durante as aulas ou recreio. Levei broncas homéricas, mas ficou por isto mesmo.
Poucos carros circulavam em Belo Horizonte naquela época. No bairro Carlos Prates, no máximo uma meia dúzia conduzida airosamente pelos felizardos. Bernardo Café, Bernardino Troncoso e Miro Magaldi faziam parte dessa elite. Meu tio Muniz também.
Portanto, o trajeto até o grupo, pouco extenso na realidade, era concluído a pé. Os solados dos calçados eram manufaturados com pneus usados para durarem mais. E duravam "ad eternum". Nada de engarrafamentos de trânsito - atualmente uma verdadeira tragédia grega na capital mineira. Meu tio Miguel se encarregava de produzir os sapatos em sua sapataria na rua Magnólia. Quando ia à sua casa me "enchia o saco" por eu ser coroinha e cantar no coral da Igreja.
A propósito de trânsito, vem-me à memória a figura do inspetor Pimentel que rotineiramente dava instruções sobre trânsito, não apenas no nosso grupo, mas em todos os outros na Capital. Principalmente hoje, onde seriam muito mais importantes essas lições não são oferecidas às crianças o que contribui para aumentar o caos e a irresponsabilidade de nossos motoristas.
Fato interessante e "sui-generis". No trajeto entre a nossa casa e o grupo escolar, havia uma espécie de pensão para tratamento de tuberculose até então uma doença muito comum no Brasil.
Belo Horizonte graças a seu ótimo clima recebia inúmeras vítimas dessa enfermidade para tentar combatê-la com a ajuda da temperatura amena da capital mineira. Dizem que o próprio Noel Rosa, o grande compositor de Feitiço da Vila e outras preciosidades da música popular brasileira, aqui estiveram procurando cura para a tuberculose.
Voltando ao assunto: a comendadora nos instruía que ao passar junto àquele casarão de aspecto sombrio e típico de filmes de Boris Karloff e Bela Lugosi, segurássemos a respiração tapando o nariz com os dedos a fim de evitar que o ar transmitisse a temida doença para nós. Anos depois, a pensão foi demolida e no local se edificou um enorme espigão e várias lojas comerciais ali foram instaladas.
Gratas recordações de meu tempo de grupo escolar: a sopa servida três vezes por semana, à tarde, e as várias excursões promovidas pelas professoras. Numa delas, visita à caixa dágua situada na Avenida Afonso Pena após a praça Milton Campos, perdi uma caneta Parker preta - um luxo na década de 40. Alguém me deu esta preciosidade, mas não me lembro quem.
As brincadeiras no "recreio" - hora de descanso - também eram animadas, mas da mesma forma, não se misturavam sexo masculino e feminino. Havia um local no pátio do grupo que não era cimentado e ali se praticava um joguinho chamado "finca". Nada de bola de futebol convencionais. As disponíveis eram feitas de meias usadas (às vezes novas) ou de borracha. Não sofríamos a pressão consumista do mundo moderno e nem por isto ficávamos tristes.
No terceiro e quarto anos nossa professora chamava-se Terezinha do Carmo von Atzingen. Há alguns anos vi-a na Estação Rodoviária, mas não puxei conversa porque o ônibus que ela iria embarcar já estava quase saindo. Loura verdadeira, de pequena estatura, seus olhos eram verdes.Costumava usar saias apertadas, mais ou menos curtas para a época, constituindo motivo de comentários maliciosos do Orville e porque não dizer dos outros colegas, inclusive eu. Como ensinou Sigmund Freud, a sexualidade é fundamental na espécie humana. Da mesma forma que a professora Nívea, dona Terezinha era muito rígida e não permitia bagunça na sala.
Maria Ediléia Labruna, colega de turma, despontava com idéias bastante avançadas para a época e estava sempre rindo e contando piadas. Bastante "prafrentex"e sempre perto dos meninos. Vânia, que morava na rua Três Pontas, uma vez se arvorou a dona da sala e quebrou uma régua em minha cabeça.
Havia um aluno negro extremamente educado e brincalhão - o Clóvis - que só voltei a encontrar por volta de 1973, na Mina de Águas Claras. Era motorista de caminhão fora de estrada, uma função importante na atividade mineral.
Nessa turma, tornei-me amigo do Denizar, meu vizinho, e do Vicente, que também morava nas proximidades. Esta amizade se acentuou a partir de 1954, quando formamos uma turma, perdurando por muito tempo. Perdeu-se no tempo após nossos casamentos.
A formatura da turma de 1947 ocorreu no dia 12 de dezembro de 1950 durante missa celebrada na Igreja São Francisco das Chagas. Teve até exibição do coral do Frei Antonello, onde eu também cantava.
No dia seguinte, às 7 horas da manhã, faleceu meu avô Chiquinho, que apesar de não ter freqüentado cursos médios e superiores, revelou-se uma pessoa extremamente atualizada com o que se passava no mundo, grande apreciador dos costumes orientais, dedicado aos seus netos, tranqüilo e que confiava nas pessoas. Essa excessiva confiança foi fatal para ele ao ser enganado e ludibriado vergonhosamente na administração do armazém que possuía na rua Esmeralda 110.