PEDRAS DE GELO E OUTRAS LEMBRANÇAS



Já haviam se passado quatro ou cinco anos quando ficou pronta a casa na Rua Sabinópolis, construída pelo comendador após ganhar um prêmio na loteria. Este fato merece um comentário face a sua singularidade. Entretanto, ele será explicado com detalhes em outra oportunidade.

Ocorreu, então, em Belo Horizonte, certo dia do ano de 1946, uma forte tempestade de granizo sofrendo a casa danos consideráveis. Como um presságio do que iria acontecer, nuvens negras e ameaçadoras, acompanhadas de raios e trovões, pairavam sobre a capital mineira.

Após a violenta tormenta, praticamente todas as janelas foram quebradas, ficando espalhados pelo chão dos cômodos da casa cacos de vidro que representavam ameaça para todos nós - dona Chiquita, eu, Zelinha, Ângela e Celso, ainda bebê.

Não havia sido ainda construído um pequeno barracão de gratas recordações, aproveitando a enorme área existente no fundo da casa e que, mais tarde, serviria de morada para meus avós maternos, vovô Chiquinho, vovó Maria e seu filho, Francisco, o Quinho.

Recordo-me dos ruídos que ouvíamos durante a noite e que certamente provinham de algum ser estranho que ali "fazia ponto". Coincidentemente, no ano seguinte, isto é, 1947, surgiria nos Estados Unidos o internacionalmente famoso caso Roswell, quando teria caído naquela cidade do Estado do Novo México uma nave extra-terrestre conduzindo seres alienígenas. Verdade? Mentira? Puro sensacionalismo? Caso semelhante cujo protagonista foi o grande ator Orson Welles teve lugar em 1939, quando através de uma transmissão de rádio anunciou a invasão da terra pelos marcianos. Este acontecimento catapultou a vitoriosa carreira do diretor do filme Cidadão Kane, um marco na técnica narrativa e nos enquadramentos de câmera. Muitos críticos o consideram o melhor filme produzido nos Estados Unidos.

Por que o Tio Sam manteve em segredo o fato? Ou seria, como se disse mais tarde, simplesmente a queda de um balão meteorológico? Estávamos em plena guerra fria entre os Estados Unidos e a Rússia. Este acontecimento teria algo a ver com isto? Não se conhece a verdade até hoje, apesar das inúmeras teorias a respeito.

Voltando à chuva de granizo. O comendador não estava em casa no momento. Através de concurso público, fora admitido no Ministério do Trabalho e designado para exercer funções na Delegacia Regional do órgão em Minas Gerais. Havia trabalhado anteriormente na Casa Giácomo e depois num setor do Ministério da Aeronáutica, localizado no Aeroporto do Carlos Prates. Estive ali em companhia dele algumas vezes observando pousos e decolagens de aviões, principalmente os famosos T-6, PT-19, DC-3 e paulistinhas, estes já montados no Brasil.

Os T-6 Texan alguns anos depois, passaram a integrar a famosa Esquadrilha da Fumaça, que hoje utiliza os Tucanos T-27. O PT-19 foi um avião pioneiro para treinamento de pilotos. Existe um no aeroporto já mencionado e uma réplica em meu escritório.

Naquela época prevalecia Ética na política e na gestão da coisa pública. Para fazer parte do quadro de funcionários federais e estaduais somente através de concurso. Nunca, jamais em tempo algum, através do "QI", jeitinho brasileiro tão em voga no governo atual, que precisa encontrar lugar para seus "companheiros", mesmo os incompetentes, com as exceções de praxe. O comendador submeteu-se a um concurso para Fiscal do Trabalho e foi aprovado, recebendo um telegrama do então presidente Getúlio Vargas, cumprimentando-o pela conquista.

Retornando à chuva de granizo. Foi uma luta recolher todos aqueles cacos e ao mesmo tempo limpar a casa, pois a água barrenta entrou em vários cômodos. O terreiro ficou alagado apesar da densa vegetação ali existente. Diziam os jornais, na ocasião, que foi a tempestade mais violenta observada em Belo Horizonte.

Montes de granizo se acumularam na esquina da rua Sabinópolis com rua Teófilo Otoni. Os jardins e os gramados existentes na praça São Francisco ficaram completamente cobertos por espessa camada de pedrinhas de gelo.

Foi um espetáculo marcante para nós crianças do bairro Carlos Prates, tendo em vista a ausência de novidades e divertimentos num período pós guerra. O negócio era brincar de "pique-salve", ir à Igreja São Francisco ou jogar futebol (com bola de meia) na mesma praça, antes que a Rádio Patrulha, então criada, estragasse nossa festa e freqüentar o parque de diversões instalado onde é hoje o Colégio Frei Orlando.

Posteriormente, viria o cineminha do senhor Luiz Krolmann, um capítulo à parte na história do bairro. Quem quiser se recordar dele é só ver o filme Cinema Paradiso.

Pensei na época como seria importante se estas pedras de gelo se perpetuassem no tempo e no espaço a fim de conservar os alimentos adquiridos para consumo lá em casa. Não possuíamos geladeira - um eletrodoméstico destinado aos mais ricos. Até hoje não sei como os gêneros alimentícios, como leite e derivados e a carne eram conservados.

O comendador teve condições de adquirir uma geladeira somente por volta de 1950 - uma Frigidaire - que tenho a impressão fora importada, porquanto o parque industrial brasileiro ainda engatinhava e éramos obrigados a receber produtos estranhos do exterior aqui despejados principalmente pelos americanos, como ioiôs, brinquedos de plástico, coca-cola etc.

Esta verdadeira "peça de museu" funciona e muito bem até hoje e está numa chácara, na localidade de Casa Branca. Apenas uma vez foi necessário pequeno reparo em seu motor. Como todos os eletrodomésticos, as geladeiras atuais são fabricadas para durar pouco, tudo isto estritamente objetivando atender as exigências de um consumismo exacerbado, característica indelével do mundo contemporâneo.

Avizinhava-se o ano de 1947 - início de meu ciclo de aprendizado e que teve como base o Grupo Escolar Mello Vianna, situado na rua Bonsucesso, que disputava com o Grupo Escolar Lúcio dos Santos, localizado no início da rua Contagem, hoje Padre Eustáquio, a posição de melhor estabelecimento de ensino primário do bairro.

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