REMINISCÊNCIAS DA IMPRENSA OFICIAL
Há poucos dias fiz uma visita depois de prolongada ausência ao famoso Mercado Municipal de Belo Horizonte, surgindo uma oportunidade de passar em frente ao prédio da Imprensa Oficial.
Neste pequeno lapso de tempo, vieram-me à lembrança os vários anos que ali estive, seja em visita, seja trabalhando até 1986, quando me aposentei com 34 anos de serviço ininterrupto.
Conheci a Imprensa Oficial por volta de 1950, graças ao tio Adolfo, que lá trabalhava há alguns anos. Certa época estive com ele, à noite, em algumas seções como a Redação, Revisão e Impressão do jornal Minas Gerais, órgão oficial do Poder Executivo mineiro.
Dois anos mais tarde, precisamente no dia 7 de março de 1952, comecei a trabalhar na Seção de Encadernação de Livros e Impressão de Formulários Oficiais, ocupando um cargo com nome estranho: Extranumerário-Tarefeiro.
Minha tarefa básica consistia em preparar o conhecido grude, que para quem não sabe, era o material utilizado para colar as páginas dos livros antes de sua encadernação. Também manuseava uma máquina de picotar blocos e cumpria outras obrigações típicas, tais como, levar café para os colegas, buscar material no Almoxarifado e também me transformar em vítima das inúmeras brincadeiras e chacotas perpetradas pelos mais velhos, como por exemplo, trazer a Marinoni. Isto mesmo, a monstruosa Marinoni - máquina usada para imprimir o Minas Gerais, pesando mais de 10 toneladas e com comprimento de 15 metros. Não dava para carregar... Hoje é merecida peça de museu. Também procurava, sob ameaça, amoladores de pincel e outros objetos estranhos.
Tudo isto fazia parte da minha rotina diária de 12 até as 17 horas, porquanto pela manhã estudava na Escola Técnica de Comércio Inconfidência. Anos mais tarde, passei a freqüentar o curso noturno dessa modelar e extinta instituição de ensino e lá obtive meu diploma de Técnico em Contabilidade em dezembro de 1958.
Voltávamos eu e meu pai, que exercia as funções de secretário-executivo da escola, após as aulas noturnas utilizando como meio de transporte os famosos bondes - de sólida influência nas minhas memórias de juventude.
Impressionava o tio Sodico minha afinidade com estes antigos veículos e os profissionais que os operavam - motorneiros, condutores e fiscais de linha. Aliás, os condutores - aqueles que se equilibravam nos estribos dos bondes, com os bolsos cheios de moedas e ainda tocavam a cordinha do sinal de parada - mereceriam um estudo especial para explicar a sua habilidade e equilíbrio.
Fato marcante que caracterizava a Seção de Encadernação era o elevado número de deficientes físicos, principalmente surdos mudos, que ali exerciam e muito bem suas funções, sendo bastante requisitados e elogiados por todos. Provocavam admiração de todos a sua capacidade de trabalho e a maneira alegre e desinibida de encarar os problemas pessoais.
A permanência na Seção de Encadernação se estendeu por aproximadamente um ano. Em princípios de 1953, com a ajuda do tio Adolfo, consegui transferência para a Seção de Contabilidade.
Minhas atribuições consistiam, basicamente, controlar o chamado "livro de carga", que funcionava como registro de entrada e saída de todos os documentos na Seção, datilografar relatórios e controlar as contas relativas a publicações solicitadas pelas prefeituras do interior.
Sobrava tempo para ler alguma coisa, principalmente, revistas em quadrinho - Cavaleiro Negro, Tarzan, Mandrake e outras - para desespero do nosso chefe, um conhecido agiota, tipo desprezível, que não tolerava leituras no local de trabalho.
Entretanto, não lia apenas revistas. Realmente comecei a devorar naquela Seção livros e mais livros, coisa que faço até hoje e que a juventude moderna não pratica.
Existia na Imprensa Oficial, não sei se ainda funciona, uma excelente biblioteca que visitei inúmeras vezes para retirar livros sob empréstimo. Levava-os para a casa ou lia-os ali mesmo. O instável humor do atendente, sempre de mal com a vida, constituia fato corriqueiro no setor. Acho que era professor de Português o que, certamente, não tem nada a ver com isto.
Entendo que o baixo nível cultural e os parcos conhecimentos gerais, características marcantes dos dias atuais, decorrem da ausência total de leitura, porque as pessoas continuam priorizando a péssima programação das emissoras de TV, verdadeiras máquinas de empobrecimento intelectual, bem como a própria Internet que facilitou tudo, mas que também oferece uma quantidade expressiva de lixo de toda a espécie.
Tudo isto sem contar a alarmante queda na qualidade de nossa música popular, inteiramente transformada para pior com estes insuportáveis cantores sertanejos modernos, o funk, o pagode e outros ritmos deletérios, todos com som no maior volume possível, um verdadeiro suplício para os ouvidos já castigados pelo aumento da poluição sonora.
Que falta nos fazem Vinícius de Morais, Baden Powell, Elizete Cardoso, Antonio Carlos Jobim, Elis Regina, Nelson Gonçalves, Noel Rosa, Sílvio Caldas, Herivelton Martins e Jacob do Bandolim. Em 1968 tivemos o privilégio de estar presentes, eu e Natália, num "show" espetacular da Elizete Cardoso, acompanhada pelo Zimbo Trio, no recém inaugurado Teatro da Imprensa Oficial.
Aqueles que ainda estão conosco - Edu Lobo, Chico Buarque, Geraldo Vandré e outros - continuam sendo boicotados pelas emissoras de rádio e TV. Uma lástima...
Falando em compositores e cantores, recordo-me nitidamente de um fato acontecido na década de 60, mais precisamente após a Revolução de 31 de Março de 1964. Ao voltar para casa, à noite, após o plantão na Redação, costumava aguardar o ônibus em frente ao conhecido edifício Maletta, cuja fama não era boa.
Havia ali alguns bares freqüentados pela intelectualidade da época. Num deles, de frente para a Avenida Augusto de Lima, inúmeras vezes observei um rapaz magrinho que tocava violão, compunha e cantava junto às mesas dos clientes. Não é que este talentoso compositor e também excelente cantor se transformaria mais tarde num dos maiores ícones da música popular brasileira! Adivinhe quem seria ele? Nada mais, nada menos que Milton Nascimento, responsável por inúmeras obras primas do cancioneiro popular e clássico de nosso país.
Havia na Imprensa Oficial alguns tipos inesquecíveis, tanto pela hilaridade, quanto pelas atitudes que beiravam a insanidade mental.
Lembro-me bem de um colega na Seção de Contabilidade extremamente ágil no manuseio da máquina de escrever Remington, que não era elétrica, e meticuloso em excesso ao redigir seus "pareceres" no verso das páginas dos documentos que analisava. Entretanto, vez por outra, no dia do pagamento, lançava pela sacada notas de cinco e dez cruzeiros que eram, avidamente, recolhidas pelo pessoal das oficinas no pátio abaixo.
Recordo-me de outra figura antológica na Seção de Contabilidade. Um tipo bastante feio e desengonçado. Todavia, sei lá como, conseguia marcar encontro com mulheres apenas consultando a lista telefônica. Uma vez fui conferir e não é que esperava por ele uma moça bem ajeitada. Evidentemente desci do carro dele, um Citroen 1950, mas tenho certeza de que ela ao vê-lo deve ter se mandado.
No início de 1957 combinamos eu, ele e mais um outro amigo fazer uma "visitinha" a determinado lugar em Belo Horizonte. Seria a minha primeira vez. Entretanto, no local e hora marcados somente eu apareci e, assim, aconteceu meu "debut". Uma nota de cem cruzeiros vermelha, daquelas impressas pela Thomas de la Rue, foi o preço da aventura.
Outro de quem me recordo exercia suas funções na Redação do Minas Gerais. Encontrei-o, fugazmente, quando para lá fui transferido em 1958. Dizia-se que, entre várias coisas, tentara montar um avião de bambu na Seção de Carpintaria. Evidentemente, não deu certo e os restos da "aeronave" ficaram espalhados por lá.
Teria, também, escrito um livro no qual expunha a tese de que todos os astros agiam como nós seres terrestres, isto é, comiam, dormiam, faziam sexo, etc. O título da obra científica era Metafotometria do Sol. Loucura total, muitas vezes acompanhada de passeios solitários, de cueca, no beiral do edifício Cauê, último andar, um prédio vizinho à Imprensa Oficial. A voz corrente é que fora, também, professor de Inglês extremamente disciplinador no Colégio Estadual.
De passagem, é bom assinalar que quem freqüentava o Estadual tinha passaporte garantido para a Universidade, face a excelência do sistema de ensino adotado e a presença dos mestres Mário de Oliveira, Tabajara Pedroso, Beatriz Alvarenga, Wilton Cardoso e José Lourenço, entre outros.
Osmar Goethe Wilke, também funcionário da Seção de Contabilidade, apresentava característica interessante. De quinze em quinze minutos tomava um copo com água e visitava o banheiro. Mais tarde, fiquei sabendo que era diabético e aos poucos foi adquirindo uma cor amarelada.
Mantinha uma criação de abelhas em sua casa, no bairro da Lagoinha, e todos os anos levava para nós mel e cera ali produzidos.
Com ele estive determinada noite, nem sei como, no lendário Montanhês, freqüentado pelo folclórico "Cintura Fina" e no passado pela famosa "Hilda Furacão", personagem principal de livro do escritor mineiro e atleticano, com direito a estátua na Savassi, Roberto Drummond. Virou, mini-série de sucesso da Rede Globo e a atriz principal foi a Ana Paula Arósio.
Guardadas as circunstâncias de tempo espaço o Chevrolet 51 visto na mini-série foi utilizado pelo meu sobrinho Alexandre no seu casamento.
A propósito de mini-séries, por qual motivo a Globo não reprisa Grande Sertão:Veredas, no meu entendimento a melhor de todas elas? Diadorim e Riobaldo foram magistralmente interpretados por Bruna Lombardi e Tony Ramos.
Quem conheceu a "Hilda Furacão" afirma com absoluta certeza que ela não tinha nada da Arósio, pelo contrário, era feia. Casou-se com um dos maiores goleadores do Clube Atlético Mineiro, Paulo Valentim, que também jogou no Boca Juniors. Estive presente num jogo Atlético e Cruzeiro no estádio Independência em que ele marcou três gols. Foi o principal protagonista de uma monumental pancadaria num jogo entre o Atlético e Chacaritas Juniors, realizado no Independência, batendo em muita gente.
Na Seção de Contabilidade, como em todos os outros setores, havia um deficiente físico, neste caso, surdo mudo, de ascendência holandesa, que sempre admirei pela sua capacidade de trabalho, inteligência e trato com os colegas. Através dele aprendi a linguagem utilizada pelos surdos mudos, que sei até hoje e que frequentemente me auxiliava quando precisava me comunicar com deficientes lotados em outras seções. Aliás, é bom ressaltar que a Imprensa Oficial sempre proporcionou oportunidades àqueles portadores de problemas físicos, o que acontece até hoje.
O primeiro namoro ocorreu em 1953, quando já trabalhava na Seção de Contabilidade. Toda a nossa família viajou para Cordisburgo e ficamos hospedados na famosa pensão de dona Inhatina, ao lado da casa de João Guimarães Rosa que iria publicar sua obra prima - Grande Sertão:Veredas - três anos mais tarde, isto é, em 1956. Naquele mesmo ano, Fernando Sabino lançava Encontro Marcado, livro excepcional de sua vitoriosa carreira literária e claramente autobiográfico.
Na realidade, foi apenas um namorico pelos moldes atuais. Andávamos pelas ruas poeirentas da cidade e, à noite, ia para a casa dela e ficávamos conversando na varanda. Após meu retorno à Capital, escrevemos um para o outro durante mais ou menos oito meses. De repente, não mais que de repente, paramos de escrever e tudo acabou.
Vizinha à Seção de Contabilidade, ficava a Seção de Expediente e Comunicações. Aí conheci outra namorada. Morava num pensionato localizado na esquina das Ruas Espírito Santo com Tupis. Hoje no local existe um grande edifício com várias lojas e um banco.
Aos sábados e domingos freqüentávamos alguns cinemas famosos - o Brasil, o Glória, o Acaiaca, o Metrópole, o Jacques e o Guarani. Assistimos filmes que foram "blockbusters" na época entre os quais Suplício de uma Saudade, O Homem que Sabia Demais e Ladrão de Casaca. Temas musicais de dois destes filmes são ouvidos ainda hoje com satisfação, como Love is a Many Splendored Thing e Quien Será Será, este cantado pela Doris Day.
De maneira idêntica ao primeiro não sei como e por que terminou. Era impossível deixar de encontrar um com o outro nos corredores da Imprensa Oficial, mas apenas cumprimentos e só isto. Vi-a, muitos anos depois, quando passávamos férias em Guarapari, eu, Natália, Marcus Vinícius e Valéria. Aliás, a experiência de nossa estada naquela cidade, em 1973, foi traumática. Pode ser tema de outro depoimento no futuro.
Permaneci na Seção de Contabilidade até 1958, quando fui transferido para a Seção de Redação do Minas Gerais. Naquele mesmo ano, em 3 de Novembro, comecei a trabalhar na Companhia de Mineração Novalimense, de 7 até as 16 horas. Após este horário, fazia plantão na Redação. Fui indicado para redigir uma coluna que trazia informações abordando temática variada, priorizando aspectos científicos. Exigia apurado trabalho de pesquisa de dados.
É bom lembrar que passaram pela Redação expoentes da literatura brasileira, como Carlos Drummond de Andrade e Murilo Rubião, que foi nosso chefe e que, mais tarde, me indicou como um dos editorialistas do Minas Gerais, na excelente companhia de Odair de Oliveira, José Bento Teixeira de Salles, Alcindo Ribeiro de Sousa, Aluísio Vieira Carneiro e Roberto Duarte, todos eles jornalistas experimentados e verdadeiras cobras criadas na profissão.
Murilo Rubião, como Gabriel Garcia Marquez, foi um dos expoentes do realismo fantástico no Brasil, cujo melhor exemplo é sua obra "O pirotécnico Zacarias" Criou, ainda, o Suplemento Literário do Minas Gerais, marco importantíssimo no sentido de disseminar a literatura brasileira no Estado e também por todo o território nacional. Através do Suplemento, abriram-se oportunidades para que vários talentos emergentes pudessem editar suas obras. Parece que não está sendo editado mais. Vale conferir...
Recordo-me da presença engraçada de alguns colegas ao longo dos 28 anos que estive na Redação. Um deles, oriundo da Seção de Revisão, tinha uma capacidade enorme de contar experiências pessoais, às quais adicionava um leve toque de humor e alta dose de inverdade, tudo isto com a maior cara de pau do mundo.
Ficaram famosas, dentre outras, as seguintes: contou que morava numa casa coberta com telhas e laje. Até agora nenhuma novidade... Ao lado havia um frondoso abacateiro e em determinado dia um abacate caiu sobre o telhado, furando a laje e espatifando-se na mesa da copa, disse ele! Em outras ocasiões gabava-se de sua potencialidade sexual dizendo que conseguia, sempre, "tirar umas cinco por noite". Recebia de imediato uma resposta que não posso reproduzir. Entretanto, foi um ótimo colega, inclusive, chegando a ser chefe.
Roberto Duarte era diretor de Recursos Humanos da Magnesita e, num final de ano, apareceu na Redação, às 20 horas, num estado etílico de dar dó. Ato contínuo começou a fazer discursos inflamados e sem nexo em cima de uma das nossas toscas mesas de trabalho Todavia, era um gentleman e um competente redator de editoriais. Foi também presidente da APAE. Perdeu um filho tragicamente na Bolívia e o corpo demorou 15 dias para chegar ao Brasil. Tenho certeza de que foi uma experiência traumática para ele e a família.
Jackson Passos - mais uma personalidade de destaque na Redação. Nutria por mim e eu por ele uma sincera amizade. Quando adquiri o apartamento no qual moro hoje me emprestou determinada quantia em dinheiro para dar de entrada no ato da compra. Sempre me pedia para agradecer o comendador, doutor Onésimo Vianna de Souza, por ele ter autorizado, quando Delegado do Trabalho em Minas Gerais, o seu registro como jornalista do serviço público.
Um diretor geral da Imprensa Oficial, também presidente da Academia Mineira de Letras, tinha a mania de visitar a Redação de surpresa, à noite, mas entrava no recinto e não cumprimentava ninguém. Pelo contrário, lançava sobre todos nós aquele olhar de superioridade marca indelével de alguns intelectuais.
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Certa ocasião, numa destas visitas, entrou na Redação da maneira costumeira, isto é, sem cumprimentar os presentes, e o Jackson disse em voz alta chegou o "bucéfalo". Acho que ele não ouviu ou fingiu que não. O certo é que jamais voltou ao setor.
A Redação do Minas Gerais sempre foi um reduto machista. Todavia, a partir da década de 70, a situação mudou. Duas jornalistas competentes se juntaram ao nosso time. Infelizmente, ambas já se encontram no "andar de cima", uma vítima de insidiosa doença e a outra de trágico acidente.
A propósito de editoriais posso garantir que era uma tarefa maçante, cansativa e inglória. Sabem por quê? O texto, que normalmente aparecia na primeira página, por motivos óbvios, não poderia conter críticas ao Governo, apenas loas às suas realizações, muito poucas num cenário de vacas magras da economia estadual. Certa ocasião, um redator escreveu virulento texto contra conceituada empresa siderúrgica aqui em Belo Horizonte. Resultado da gafe: o jornal teve que publicar no dia seguinte um desmentido oficial e o nosso colega recebeu pesada punição.
Por outro lado, acredito que os editoriais tenham me auxiliado bastante na conquista do cargo de Redator do Serviço Público e, posteriormente, Técnico em Comunicação Social.
Não sei precisar a data, mas o Estado abriu concurso para preenchimento de vagas para este cargo. O concurso consistiu na apresentação de títulos, análise da experiência dos candidatos e extensa prova escrita. Num universo de 250 postulantes, fiquei em 10º lugar e tenho certeza que os inúmeros editoriais redigidos, os títulos universitários que possuo e a experiência representaram fator decisivo para esta conquista. As primeiras posições foram preenchidas por "papas" do jornalismo mineiro, alguns dos quais mencionei anteriormente.
Outro "suplício" que os redatores tinham que aturar e que exigia muito esforço de cada um, mesmo porque todos trabalhavam em outro emprego durante o dia, seja em algum outro jornal, ou em outra atividade, era o execrável plantão noturno mensal.
Durante trinta dias cada um de nós era obrigado a permanecer na Redação até o jornal entrar na impressora, a tal Marinoni. A função do redator de plantão consistia em ler e eventualmente revisar toda a parte do noticiário a fim de captar algum engano ou impropriedade. Este noticiário se compunha normalmente de quatro páginas, podendo chegar a dez, conforme as circunstâncias e o interesse governamental.
Dependendo da boa vontade dos funcionários da Revisão ou mesmo da Impressão, várias vezes éramos liberados somente entre duas e três horas da madrugada. No meu caso, o expediente na outra empresa se iniciava às 7:30 horas. Vê-se que não dormia nada...
A dica que os veteranos nos passavam era a seguinte: presentear o chefe destas seções com uma garrafa de cachaça, mas que devia ser das boas e não qualquer uma. Um comentário à parte: jornalista, não sei se devido ao ambiente noturno de trabalho ou inclinações para a vida boêmia, sempre foi adepto da branquinha. Havia e há honrosas exceções, é claro.
Caí na asneira de presentear o chefe da Impressão com uma 51 e levei a maior bronca por ter ofertado uma caninha tão ruim no dizer dele. Quase me jogou a garrafa na cara.
O trabalho da Redação não se restringia apenas aos editoriais. Recebíamos as chamadas matérias preparadas pela Assessoria de Imprensa do Palácio da Liberdade a partir das 16 horas. Cada um se responsabilizava por uma ou mais e fazia o seguinte: lia toda ela, revendo-a se necessário, dirigindo especial atenção ao famoso "lead" ou "nariz de cera", que é a parte introdutória, para verificar se estava ou não consistente com o resto do texto. Posteriormente, atribuía-se a cada uma um título que exigia certo padrão, isto é, determinado corpo e número de caracteres. Parecia fácil, mas não era. Após isto tudo, as matérias prontas eram encaminhadas para o setor de Paginação, na própria Redação, e distribuídas nas páginas, de acordo com sua importância.
Posteriormente, após a aprovação do chefe da Redação eram encaminhadas para a Seção de Composição, usando ainda as antigas máquinas de linotipo, que fazia a montagem das páginas e depois as devolvia à Seção de Revisão para uma leitura crítica final. Após isto tudo, todas as matérias paginadas e revistas seguiam para a Seção de Impressão do Minas Gerais, encerrando-se ali, já alta madrugada, todo o processo de edição do jornal.
Hoje todo o processo de edição do Minas Gerais é informatizado e as velhas máquinas estão certamente esquecidas em algum museu ou na própria Imprensa Oficial.
Três acontecimentos, dois com contornos trágicos, e outro com uma pitada de comicidade e outra de perplexidade, foram presenciados por mim e tiveram como pano de fundo o prédio da Imprensa Oficial e seu entorno.
Um deles foi o suicídio de um funcionário, no hall de entrada do prédio. Tiro certeiro no coração. Nosso setor de trabalho se localizava ao lado direito de quem entra na repartição e pudemos ver o suicida, esvaindo-se em sangue, amparado por vários colegas, ser carregado e colocado num carro estacionado no local. Mais tarde, tivemos notícia que não sobrevivera. Não o conhecia pessoalmente e nem sei o motivo do tresloucado gesto. Aliás, este não foi o único atentado contra a própria vida ocorrido na Imprensa. Houve outros, inclusive com participação feminina.
Ainda no recinto do órgão, num fim de ano, se não me engano na década de 70, presenciei uma cena que até hoje conservo em minha memória fotográfica. Numa destas festas natalinas tradicionais, reuniram-se no pátio interno funcionários e seus familiares. Após a apresentação de um conjunto musical e um pequeno espetáculo teatral, seria servido um lanche aos presentes.
Aconteceu, aí, a cena inusitada e tragicômica. Tão logo os garçons adentraram o recinto levando lanches acompanhados de refrigerantes e presentes, foram "atacados" e jogados de forma violenta no chão e o que se viu foi uma balbúrdia geral no sentido de cada um agarrar logo lanches e presentes indiscriminadamente. Não fiquei lá para ver o final da festa, mas dá para imaginar...
O triste acontecimento que agora descrevo teve lugar, se não me falha a memória, nos anos 60. Acabado o expediente, às 17 horas, dirigia-me para o ponto do ônibus Carlos Prates, que se localizava na Avenida Amazonas, em frente à antiga Perfumaria Lourdes, tradicional loja da Capital, especializada perfumes e objetos femininos.
Ao subir a Rua Rio de Janeiro, logo após o cruzamento com Augusto de Lima, vislumbrei na esquina desta mesma rua com a Rua Goitacazes uma senhora acompanhada de três crianças pequenas. Aproximadamente 30 metros do local, percebi que um ônibus que trafegava pela Rua Rio de Janeiro perdeu a direção, transpôs o passeio e atropelou as quatro pessoas, matando-as instantaneamente.
Fui um dos primeiros a chegar, mas fiquei paralisado e não fiz absolutamente nada, só conseguia ouvir os gritos e lamentações dos transeuntes. Lembro-me de ter visto o motorista do ônibus sair correndo do local em direção ao Mercado Municipal. Não almocei e nem jantei nos três dias seguintes. Naquele tempo, o acidente mereceu página inteira nos jornais da cidade. Hoje acontecimentos deste tipo nem são mais matéria de reportagem tal a freqüência com que ocorrem.
Exerci, em substituição, a chefia da Redação por duas oportunidades. No final de carreira fui sondado para chefiar o setor de forma definitiva, desde que lá pudesse permanecer o dia inteiro. Não pude aceitar porque o cargo que ocupava na Minerações Brasileiras Reunidas S/A era mais vantajoso em termos financeiros.
Mais tarde, por circunstâncias várias, esta situação se inverteu, porquanto minha aposentadoria no Estado vale hoje mais do que aquela proporcionada pelo INPS, graças aos governos Fernando Henrique Cardoso e Lula que têm prejudicado maliciosamente os aposentados se esquecendo do que eles fizeram para o Brasil em épocas muito mais difíceis.
Meu desligamento da Imprensa Oficial ocorreu no dia 15 de agosto de 1986. Mereci no jornal Minas Gerais apenas a frase a seguir.
"O Governo do Estado de Minas Gerais concede, a partir desta data, aposentadoria ao sr. Antonio Castilho de Souza, de acordo com a legislação em vigor".
E ponto final... Mais uma vez verifica-se que todos nós não passamos de mera engrenagem de uma gigantesca e insensível máquina, neste caso o Estado, ou seja, o Leviathan.